julho 12, 2005

João Sem Medo

Lugares-comuns

"João Sem Medo não resistiu à indiscrição de espiar a vida privada daqueles seres tão insólitos. E, de orelha à escuta, postou-se à esquina do largo principal da cidade. Justamente nessa ocasião um senhor de chapéu de palha equilibrado no disco e camisa de colarinho aberto encontrou outro com a mesma indumentária. E a conversa principiou deste teor:
- Como passou? Bem?
- Optimo, obrigado. E você?
-Esplêndido. Belo tempo, hem?
-Magnífico. Um dia maravilhoso!
- Amanhã provavelmente teremos chuva...
- É possível... Mas hoje o calor é de torresmos...
(...)
Após esta profundíssima troca de pensamentos, apertaram as mãos com afabilidade e separaram-se a limpar o suor e o pó dos discos com os lencinhos de flanela da última moda.
Logo a seguir desembestou na praça uma dama de manivela frisada que por pouco, aliás, não atropelou uma amiga que caminhava em sentido inverso. Riram muito e demoraram-se um momento a desenferrujar as agulhas:
- Olá! Há tanto tempo que não te via!
- O teu vestido é um amor!
- Agora usam-se bordados nos diafragmas, como sabes.
- Ah! E as criadas? Cada vez estão piores, não achas?
- Ah! Não me fales das criadas! São uma peste.
(...)
E, terminada esta conversa de tão alto sabor intelectual, levantaram as agulhas e apartaram-se com imensos adeusinhos de intimidade feliz. Nessa meia-hora de espionagem, o nosso João Sem Medo só ouviu discutir o tempo, as criadas e as modas, sempre com as mesmas palavras, as frases infalíveis e os eternos lugares comuns.
- A maioria das pessoas já nem pensa! - filosofou o rapaz. - Fala. Isto é: limita-se a pôr o aparelho em acção, a acertar a agulha no sulco respectivo e a deixar tocar o Disco... sempre igual, aliás. (...)
Os amigos, quando se abraçavam nos cafés e nos átrios dos cinemas, repetiam maquinalmente as geladas frases-feitas do costume:
- Estás género bestial, pá!
Ninguém, em suma, se esforçava por quebrar o Disco ou gravar outro. Falavam, falavam, durante horas sem fim, nem descanso e, quando pressentiam falta de corda, dirigiam-se ao transeunte mais próximo com uma vénia cortês:
- Vossa Excelência quer ter a bondade de me dar à manivela? Bastam duas voltas.
- Ora essa, cavalheiro. Com muito prazer.
O passeante delicado dava-lhe corda, o outro agradecia e pegavam de conversa:
- Que calor, hem?
- Muito... Mas amanhã provavelmente chove.
- Talvez não. O céu está tão azul!... "

Aventuras de João Sem Medo (1973) de José Gomes Ferreira.

As Aventuras e desaventuras de João Sem Medo. Interessantes, vibrantes, viciantes e apaixonantes...que nem um Gabriel!

3 comentários:

Anónimo disse...

gostei mt de "parte" do post *cof cof* : a parte que percebi!

Que tenhas sp e nunca percas a coragem do João Sem Medo e a ternura do João Medroso :)

beijinhos,
Pistacha *

Tia Filipa disse...

porraaa.... ta mal...

eu que ia dizer k a pistachia ja tinha representado essa peça!

rotâ!!!

o gabriel.. é assim.... nem sei como dizer... tu sabes!

jsc disse...

a gabriel tambémm... ;)